Li o “Palavras de Ordem”. Bem simples assim. Acompanhei o seu processo, tive o privilégio de ler o texto antes de ficar pronto e também de discutir com o autor sobre as idéias nele contidas. Justamente, baseado nessas discussões, que faço esse outro texto, que discute o texto anterior, acrescentado de algumas idéias minhas.
I. O Santa Cruz
O Santa Cruz é o Santa Cruz. Nada mais precisa ser dito. O nome, e a fama nele contida, já diz tudo. Não preciso dizer que é uma escola conhecida pela alternatividade no sistema de ensino. Não preciso dizer que é uma escola conhecida, sim, pelos alunos com um mínimo de senso crítico que dali saem. Não preciso dizer que é uma escola que, diferente de muitas outras, é amada pela maioria dos alunos. Você está contente quando estuda lá. Você reclama das provas e das aulas de Geografia eternas mas dificilmente vai sair sem uma boa razão pra sair. Eu não preciso dizer, mas disse.
Um fato, colocado pelo meu amigo autor do outro texto, é que o Santa Cruz cresceu. Não é mais um internato de 100 idiotinhas em Higienópolis. É uma escola enorme com 2000 idiotinhas em Pinheiros. Não perca esse crescimento de vista.
O Santa superou o seu projeto em tamanho. Você realmente acha que o Padre Charbonneau planejava um colégio desse porte? Agora, meu estimado leitor, pense comigo: será que é tão fácil provocar o aluno para pensar sobre o mundo em que estão inserido numa escola gigantesca quanto é fazer a mesma coisa numa escola com alguns poucos alunos?
O nosso colégio cresceu, e a sua filosofia teve de ser adaptada a esse crescimento não planejado. É incompatível o projeto idealizado pelas padres com as proporções que o Santa adquiriu. Vamos tentar entender o que acontece agora na “segunda casa dos meninos”.
II. A Caridade
A caridade foi citada pelo meu colega. Segundo ele, o Santa não faz a devida propaganda da caridade que faz. Não envolve os alunos nela. Deixa ela como algo distante, quase com uma indiferença. Gostaria de dar uma certa atenção à nossa estimada caridade.
Não faço caridade. Não faço trabalho voluntário. Não faço e, admito, não pretendo fazer. Sou, de certa forma, contra a caridade. Vou tentar explicar por que.
No ato da caridade, há quem ajuda e há quem é ajudado. Nada mais lindo. Devemos nos lembrar, porém, para quem é feita essa caridade. Se ela feita para quem ajuda ou para quem é ajudado.
Joberval é uma criança pobre. Ele faz aulas de circo, e adora. Sonha um dia em ser um artista de circo ou coisa do tipo. O circo o acolhe e, por duas horas mágicas semanais, ele esquece do resto da sua vida.
Quando acaba a aula de circo, Joberval volta pra casa. Encontra seu pai, completamente bêbado, no sofá velho que encontraram por aí. Papai o xinga, bate nele e xinga de novo. Depois de cumprimentar o pai, vai para a geladeira velha que acharam na rua. Vazia. Ainda bem, porque está quebrada mesmo, a comida iria estragar. Sua mãe está trabalhando numa casa, recebendo um salário que dificilmente poderia ser chamado de salário. Sua irmã saiu de casa há alguns, provavelmente vive a vida nas esquinas, saindo com rapazes em troca de dinheiro.
De noite, Joberval pensa nas aulas de circo. Aguarda ansiosamente aquelas duas horas abençoadas que esquece da família, esquece da falta de comida, esquece do nome “exótico” que recebeu. Reza para que terça-feira chegue logo. Pensa que tudo bem o resto da vida sofrível que leva, enquanto tiver essas duas horas alegres por semana.
Muito bem, apelos sentimentais à parte, tudo bem, estimado leitor? Você concorda com o pequeno Joberval? Vale a pena essa vida horrível que tem pelas duas horas de esquecimento e alegria?
A caridade cega. Quem a recebe esquece por que está recebendo. Ignora o fato de que não deveria precisar de nada. A vida não é tão ruim, eu ainda tenho o dinheiro daquele executivo todo ano- 100reais.
Quem sabe se Joberval não tivesse essas “duas horas abençoadas” ele não iria questionar a porcaria de vida que leva? Não iria perguntar por que seu pai é um inútil bêbado que não consegue emprego? Por que sua mãe é uma semi-escrava que nem carteira assinada tem? Por que passa fome? Tudo bem, eu ainda tenho as minhas aulas de circo.
Do outro lado, a pessoa que lhe dá aulas de circo gratuitamente. Ela sente que faz sua parte para melhorar o mundo. Volta pra casa com os ombros aliviados. “Não sou uma pessoa ruim, eu faço aquele menino sorrir toda terça feira”. Parabéns, meu querido. Agora, por que ele não pode sorrir todo dia? Querendo ou não, a culpa é sua.
A culpa é dele. E sua também, divino leitor. E minha. Somos a outra ponta do capitalismo. Somos os causadores da desgraça de Joberval. Joberval apanha por causa do rapaz que lhe dá aulas de circo. Joberval não têm um alguém que possa chamar de pai porque você existe. E fui eu quem fez com que a irmã de Joberval fosse uma prostituta de rua.
A culpa é nossa porque não fazemos nada pra impedir que mais e mais Jobervais nasçam. Não, eu não estou falando de uma matança generalizada de crianças de baixa renda, meu estúpido leitor psicopata, eu estou falando de fazer com que essa situação de desigualdade seja revertida. Nós não fazemos nada para consertar a nossa sociedade. E, quando nos calamos, nós compactuamos com a estrutura em que vivemos.
A culpa é dele, é sua, e é minha. Não sei quanto a vocês, mas eu não me sinto muito bem com relação a isso. Não acho muito divertido ser a causa do martírio de milhões de pessoas. E não esqueço jamais dessa culpa, e não esquecerei jamais. Não vou tentar me livrar dela, a não ser quando não tenha mais nada para me sentir culpado.
E é por isso que não faço caridade. Quem faz caridade acha que por causa disso está livre de acusações, e assim pode dormir tranqüilo à noite. É dono de uma multinacional que usa trabalho infantil, mas tudo bem, ele dá esmola no farol.
Caridade é ruim, pois afasta o que realmente deve ser combatido: as causas dela existir. Um mundo sem caridade seria melhor, pois não haveria necessidade dela.
Agora, voltando ao nosso assunto inicial, realmente é melhor deixar os alunos do Santa engajados na caridade que a escola faz? Ou as aulas de Ética e Cidadania já são mais do que suficientes?
III. A santíssima trindade
Alunos, professores e diretores. A base de qualquer escola. Qualquer aspecto da escola não pode ser analisado sem levar em conta essa trinca. Além disso, deve ser inserido um outro pilar: os pais. Um grupo diretamente relacionado aos alunos, mas que tem algumas diferenças.
Vamos nos concentrar num fato apontado pelo excelentíssimo senhor Francisco Carvalho de Brito Cruz: muitas pessoas saem do Colégio Santa Cruz perfeitas idiotas. Agora vamos pensar, onde será que está o erro nessa história?
Seriam os professores? Certamente não, pois estes são, sem sombra de dúvida, a classe mais nobre do nosso estimado colégio. Não há nada de errado com eles. Bom, talvez com aquele... hã, deixa pra lá.
Sobram a diretoria e os alunos(com alguma interferência dos pais). Bom, sabemos que muita gente sai imbecil do Santa, mas tem também uma quantidade razoável de pessoas que merecem respeito e que têm senso crítico. Ali o trabalho foi feito.
Ou seja, se em alguns alunos tudo deu certo, e em outros nem tanto, será que o problema é a escola como um todo ou os alunos? Se você ainda não descobriu, acompanhe-me (se ainda assim não descobrir, favor pedir ajuda médica).
O colégio Santa Cruz é um ensino de elite para elites. Num Brasil em que as escolas públicas são deprimentes, um bom ensino requer dinheiro. E poucos podem pagar um Santa.
Poucos... Alguns pertencentes a uma mesma classe social. A diversidade dos freqüentadores do colégio é baixa, portanto. O colégio precisa do dinheiro pra sobreviver. Agora, me respondam, já que poucos podem pagar o Santa, e o Santa precisa de muitos desses poucos, você realmente acha que é possível ele se dar ao luxo de escolher quem que vai estar lá dentro? Eu adoraria ver um diretor enxotando um aluno com uma vassoura: “Xô, passa! Você não tem senso crítico!”.
O aluno está no Santa para passar de ano. Até acabar o terceiro ano, aí ele tem um emprego garantido, acumula, têm filhinhos, acumula mais, e manda os filhinhos pro Santa, pra passarem de ano e depois acumularem um pouquinho também. E é assim com muitos.
Nada pode ser feito com quem não quer aprender. Por mais que a idéia seja tentadora, não é possível espancar o aluno e bater com a cabeça dele na parede até ele aprender a valorizar a escola. Faz-se o que pode. É oferecida a chance de realmente aprender e de pensar por si só. Quem quer, aprende e pensa. Quem não quer, passa de ano também e vai ter um Santa Cruz estampado no currículo.
Seria ótimo poder filtrar no colégio somente os alunos que estão levando a sério o que têm ali. Mas são poucas as opções, devido à reduzida classe que pode freqüentar nossa escola. Se você enxotar o aluno alienado, você não sabe se um outro melhor vai aparecer na porta para preencher a vaga.
Portanto digo que quem é o culpado pela formação de uma elite alienada é a própria elite alienada, que não aproveitou a chance que teve (ou não quis aproveitar, devemos citar também). Ouso dizer, também, que o fato do aluno só querer se formar para ter um bom emprego é um remanescente da educação que teve dos pais(ou do mordomo, devemos citar também). Se ele se torna um péssimo cidadão, é porque já era um embrião de péssimo cidadão quando nasceu. E isso, meus amigos, não tem escola no mundo que conserte.
IV. A administração: culpada. Culpada?
Nosso colégio ganha rios de dinheiro. Nosso colégio gasta rios de dinheiro. Inegável. A questão é, e qual é exatamente o problema nisso?
O Santa Cruz é uma escola particular num país capitalista num mundo capitalista, com diretores capitalistas, professores capitalistas e alunos capitalistas (sempre com alguns comunistas perdidos por aí). Tem, também, como função, ganhar dinheiro. É dirigida, também, para gerar dinheiro. Além da visão do ensino e da formação das crianças, tem também um lado de ganho de dinheiro.
“Ah, mas eles são uns safados, que só querem ganhar dinheiro”. Sim, eles querem ganhar dinheiro. Quando mais dinheiro, melhor. Mas não é só isso que eles querem, eles também querem dar o melhor ensino que puderem embasado numa filosofia norteadora. Ah, as segundas intenções.
Novamente divagando um pouco, vamos tratar das segundas intenções. Vou contar um segredinho para vocês: as segundas intenções existem sempre. Repito: sempre. Ninguém faz para ninguém de graça.
Você sempre quer alguma coisa quando faz algo. Seja ganhar dinheiro, seja te fazer feliz, seja ir para o céu (essa quase ninguém nota), seja se sentir melhor, seja dormir à noite, seja que o outro goste mais de você, seja fazer com que o outro fique feliz e aí sim você fique feliz, seja se achar uma pessoa boa. Tem sempre algo por trás. Repito: sempre.
Assim, não vá achar que o Santa está lá somente para criar uma elite pensante. Ele também precisa ganhar dinheiro. Se isso é bom ou ruim, o fato é que a administração tem se voltado cada vez mais para esse lado financeiro, deixando para os professores o outro objetivo.
E o Santa tem os seus clientes. No caso, alunos e pais, com ênfase no segundo. Um colégio que não liga para o vestibular é um colégio sem alunos. Um colégio que não tem uma taxa razoável de aprovados na USP não é um colégio feliz. É dever do colégio, o que eu acho que ele faz com uma competência admirável, equilibrar o lado da liberdade, da responsabilidade, do senso crítico com o do vestibular.
V. E tem jeito, doutor?
Será que conseguiremos impedir essa alienação da nossa elite? Será que o Santa vai sempre formar idiotas que vão mandar seus idiotas juniores para o colégio? Será que o Bruninho vai trair a Mari?
Meus senhores, eu não acho que o problema esteja realmente no lugar que chamamos de escola. É bem maior que isso. Se a nossa elite não presta e não liga pra nada, o problema está na base da sociedade em que vivemos. E, para mudar isso, teremos que realmente rever as estruturas do cenário em que estamos incluídos. Digamos que tenham coisas mais fáceis de se fazer. Mas temos que tentar.
Mas é claro, existem coisas muito mais importantes que o Joberval. É muito mais essencial ficar no orkut, MSN, “curtir a vida”, a juventude, do que tentar mudar o mundo, que é evidentemente assunto de babaca. Me desculpe, pode ir contar para o Jarbas, seu mordomo, como foi inesquecível a viagem para o Guarujá no último feriado.
terça-feira, janeiro 16, 2007
Em um momento de intensa genialidade e criatividade que lhe é característica o meu grande amigo Benjamin Feldmann (sim, esse é o nome dele) construiu este comentário sobre o texto "Palavras de Ordem" colocando nele algumas de suas mais interessantes visões. Destaco neste as ironias impagáveis de Feldmann assim como sua reveladora e polêmica visão sobre "Caridade". Obrigado, Benj.
texto de Benjamin Mariotti Feldmann
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3 comentários:
quem é rodrigo?
eh o bobibigo
Discordo do seu argumento contra a caridade Benj... Desde quando um Joberval da vida terá estrutura de pensamento o suficiente para pensar sobre como a vida dele é uma bosta?
O mais provavel é ele ser um Fabiano da vida(Vidas Secas) o qual mal sabe se expressar direito e(sim, mas que comentário nerd, né?) que está inserido no contexto de São Paulo. Sendo assim, ele fatalmente partiria para a violência com raiva do mundo, inveja do que os outros têm e ele não. De forma que ele não se perguntaria sobre como e porque ele leva uma vida de merda e seu pai é um bêbado escroto. Mais fácil fazer caridade para enfiar esse tipo de pensamento na cabeça desse tipo de pessoa do que deixar de fazer qualquer caridade e fazer com que a violência na cidade aumente. Caso você não saiba, o esporte e centros de caridade são sempre soluções recorrentes para diminuir a violência de qualquer lugar.
Sem mais,
Sessé
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