sexta-feira, janeiro 05, 2007

3. A Arquitetura da destruição

A forma segue a função. E como segue.

Certamente é sempre dificílimo discutir arquitetura, principalmente entre leigos. O gosto pessoal imprimido nas opiniões as deixam superficiais e pouco analíticas e a cultura do bonito e feio dificulta uma análise mais detalhada de uma construção, de uma obra.

Também não venho aqui fazer um tratado de arquitetura, até por que não sou formado nessa arte. As linhas gerais de meu raciocínio seguem uma postura relativamente neutra(em relação a gosto pessoal) de relatar e observar criticamente os fatos ocorridos com o Santa Cruz físico – este que todos nós vemos e sentimos todos os dias.

O edifício original do colégio, este que estudamos, o colegial, foi projetado na década de 50 pelo arquiteto carioca Roberto José Goulart Tibau. Falecido recentemente com 79 anos, o artista desenvolveu ao longo de sua vida uma trajetória extremamente expressiva dentro do cenário da arquitetura modernista brasileira. Sua carreira foi permeada por projetos de cunho educacional, tanto público como privado, e foi guiada pela chamada “Escola Carioca”, vertente esta que trazia todos os preceitos que cabiam naquele novo colégio: inovação, vanguarda, modernidade e consciência. O resultado foi o prédio onde estudamos.

Muita gente pensa que arquitetura é uma escultura sem significado interpretativo onde por acaso passamos toda a nossa vida dentro – uma mera representação estética com valor superficial. Não é. O espaço age sobre a sociedade e esta molda o espaço como mais lhe convém. No famoso, porém antigo, filme “The Fountainhead” o professor de arquitetura diz ao seu pupilo, já quase morrendo na ambulância numa cena antológica em que os prédios passavam rapidamente ao fundo: “lembre-se, a forma sempre segue a função”. Esta máxima, reparo, nunca deixa de ser verdadeira pois até um edifício que pretende ser outra coisa, tem a forma tentando imitar outra função, adquiri justamente uma função de imitador, de mimetismo.

Passemos então tal máxima do professor ao prédio do Ensino Médio, o chamado Pavilhão Colegial (ou do EM), onde também se localiza a Direção Geral do colégio. Observemos o Pavilhão Paulista (biblioteca e CEI), o “Canadá” (classes do Ensino Fundamental), o Pavilhão Henri Borden (ou do EF). As suas formas tem funções? Seus detalhes têm anseios, preocupações? Um por um cada elemento que compõe o todo tem sim seu papel, tem sim seu lugar na construção – não só a material, a estética, a física, mas também a construção pedagógica dos alunos.

Vocês acham que tudo isso é uma “viagem”? Responda-me então, caro leitor, se realmente para você a ponte, as rampas e o pátio interno do colegial são mera decoração. Nossa! Mas que coincidência esse espaço se ajustar perfeitamente para eventos como os shows no recreio e o carnaval do terceiro ano mesmo depois de cinco décadas passadas de sua construção. Mas que coincidência o corredor onde ficam as salas dos diretores do colégio ter aquela esfera que pede discrição, respeito e silêncio pois qualquer sussurro pode ecoar pelas pedras e ser ouvido por ouvidos dos poderosos. Que coisa curiosa o colégio ter tanto verde, gramados e estes servirem justamente para os alunos despretensiosamente sentarem e aproveitarem a tranqüilidade da natureza! Mas porquê será que o sol é elemento sempre presente nas salas de aula? Qual o motivo de tantos campos e quadras?

Pasmem, tudo é planejado. Tibau em sua obra pensou sim nas rampas, nos pátios, nos gramados, nas escadas e na ponte. A forma moderna, a forma que todos vocês conhecem, serve perfeitamente à função de escola de vanguarda, de escola moderna, de instituição fora dos padrões normalmente rígidos de disciplina. A fachada ampla, horizontal e paralela apresentada, por exemplo, no Pavilhão do Ensino Médio denota e ajuda a passar como que o Colégio Santa Cruz foi planejado. É fácil perceber a diferença entra uma arquitetura de uma escola ditadora, rígida e conservadora e a arquitetura de Tibau concretizada no edifício santa-cruzense sobre o qual falamos. A diferença entre um frio pátio de pedra vigiado por câmeras, bedéis e pela diretoria da escola e um outro em simbiose com um jardim florido e livre das amarras da rigidez acadêmica doentia se não é gritante é, pelo menos, evidente.

Prova mais do que explícita de todos estes argumentos são as próprias palavras de Charbonneau. Em seu livro A Escola Moderna – Uma Experiência Brasileira: O Colégio Santa Cruz[1]o padre disserta exatamente sobre este assunto, dedicando à este um tópico na sua descrição do colégio. A escola: As estruturas físicas[2] evidencia a preocupação dos fundadores com a arquitetura da escola. O autor ressalta a importância de praticamente todos os fatores que compõe o Santa que temos hoje: o sol[3], a natureza[4] e a própria sensação de liberdade[5]. O que já é claro e concreto nas vigas, janelas e paredes do nosso colégio projetadas por Tibau é nessa obra escancarado por Charbonneau. A análise é concisa e vai direto ao ponto – antes a escola era opressora, fria e severa, de desenho rígido; agora não. O Santa Cruz deve inaugurar a escola como sendo um ambiente antagônico à “este ambiente que só podia suscitar uma repugnância natural e, em conseqüência, muitos entraves psicológicos”. A escola, como diz o padre citando Gerard Vincent, deve ser a “segunda casa dos meninos”.

Mas nem tudo é maravilhoso no Santa Cruz, como venho dizendo neste texto. Há algo de podre no Reino da Dinamarca. A burguesia que quer seu filho com a marca “Santa”, a grife da camiseta amarela, e as pressões que esta mesmo faz pelos pais pertencentes a ela começa a mudar a função do colégio. Todo o tipo de alteração e de decadência dessa função vai – Inexplicavelmente! – modificar a forma do colégio.

O bizarro toldo de plástico na frentes das janelas das classes do terceiro ano e acima da cantina. A cimentação de gramados. A colocação de grades inexplicáveis. A cobertura plástica que avança sobre o sol dos terrenos do Ensino Fundamental. Tantas medidas podem exemplificar a modificação, ainda prematura, da forma física do colégio. É incrível como inacreditavelmente o toldo impede a visão do pátio e do sol e ,portanto, a distração com a atividade externa, com o ar livre. É espantoso que (óbvio que ninguém pensou nisso) a impermeabilização de áreas gramadas impede os alunos de se aproveitarem das áreas verdes do Santa Cruz – praticamente uma marca registrada de seu nome. Mas que engraçado que as grades colocadas sem explicação limitam o espaço dos alunos à justamente as áreas cimentadas e que as mesmas impedem a entrada dos estudantes em espaços dos mais variados possíveis. Curioso? Factual.

A verdade é esta: a decadência da obra de arquitetura de vanguarda feita para um colégio de vanguarda. O fortalecimento de idéias e de valores de certa maneira conservadores na parte do ideário fixo e concreto do Santa Cruz. A verdade é a crescente contradição entre o que Charbonneau dizia que o colégio deveria ser e o que ele está se tornando. A incoerência das linhas modernas – anseio de liberdade – de Tibau e dos cimentos, asfaltos, grades e inexplicáveis toldos que surgem do nada. A escola “cercada de asfalto e esmagada, de todo o lado, por outros edifícios” negada pelo padre surge e a comunidade, inacreditavelmente, acompanha calada.

E, enquanto isso, o escritório UNA, composto por jovens arquitetos talentosos, que vira e mexe está na mídia, nos jornais, e que parece fazer esforço para isso, concretiza e finaliza o projeto arquitetônico da Unidade II do Colégio Santa Cruz no Butantã, a famigerada e discutida Unidade Bilíngüe. As linhas modernosas conseguem maquiar a arquitetura modista ou só a explicitam? É melhor parar – vou acabar entrando no território gosto-não-gosto.



[1] CHARBONNEAU, Paul-Eugène (1925-1987); A escola moderna, uma experiência brasileira: O Colégio Santa Cruz. São Paulo, EPU, 1973.

[2] Pág. 37-40

[3] (...) É fenômeno conhecido que o sol gera alegria.(...) – pág. 39

[4] (...) Uma escola, cercada de asfalto e esmagada, de todo o lado, por outros edifícios, que formam uma floresta de pedras e cimento, toma o aspecto de jaula. Que de seu lugar, no meio da sala de aula, o menino possa sentir o perfume de um oásis verde e repousar a vista na multiplicidade multicolor das flores de um jardim, é um fator que pesa. (...) – pág. 39

[5] (...) Não se pode definir melhor a escola: a segunda casa dos meninos: Para isto é preciso que ela tenha dimensões humanas e irradie certo calor; que seja atraente no sentido próprio do termo, isto é, que atraia o estudante de modo que ele venha para ela com alegria; que ela seja organizada de maneira a dar uma sensação de liberdade, e que nela ninguém se sinta comprimido e privado de toda mobilidade. (...) – pág 38

Um comentário:

Thomás disse...

Genial, genial, genial!