terça-feira, outubro 16, 2007

22.

Como vocês todos já sabem a saga huckiana é sucesso total. Uma polêmica de proporções globais, pelo menos desde que Ferréz publicou uma resposta no mesmo espaço da Folha de São Paulo exatamente uma semana depois de "Pensamentos quase póstumos". O rapper do Capão Redondo elevou à décima potência a intensidade das discussões sobre o rolex de Huck com opiniões bastante desconstrutivas e interessantes à respeito da opinião do ilustre colega apresentador. Uma semana após este artigo do escritor da periferia ser publicado e depois de várias publicações tratarem do assunto (vide texto 21) o jornalista e colunista da revista Veja Reinaldo Azevedo resolveu pôr as manguinhas de fora e ir ciscar fora de seu blog vinculado ao website da Veja. Indignado Azevedo publicou um artigo (clique no link para acessar) no mesmo espaço que Ferréz e Huck o fizeram e, em razão deste cidadão já ter se opinado bastante a respeito de assuntos uspianos e franciscanos, resolvi que seria interessante tentar analisar e comentar o seu texto para a Folha.

A democracia azevediana dos não-idiotas
Huck, Ferréz, Ascher. Centenas de leitores. Da Matta, Baleiro. Mais centenas de leitores. Revistas Veja, da Semana, Época. É, amigo Luciano, você conseguiu criar um belo de um bafafá. As palavras inconseqüentes do apresentador que deixa o Brasil acima de tudo "mais bacana" repercutiram e chegaram a seu vértice oposto nas palavras do rapper do Capão Redondo.

As declarações de Ferréz atingiram os alicerces da burrice nacional que as tomou como uma apologia ao crime. Burrice comparável à dos empolgados grupos que viram Tropa de Elite e agora veneram em enormes comunidades de Orkut as torturas e os lemas perversos do BOPE. Ferréz, em minha leitura, não defende o crime e muito menos o justifica. "Faz ficção" como diz o ombudsman da Folha de São Paulo Mário Magalhães e uma ficção exagerada com a intenção clara de ser diametralmente oposta ao pensamento do global. Tenho certeza que o rapper não acha certo o uso de violência pelo simples fato dele a ter sempre perto no bairro de onde é oriundo. Ninguém gosta de ser constrangido, violentado ou ter seu espaço pessoal invadido agressivamente, é fato.

A crítica aguda do caponista é sempre relativa ao texto de Huck, à sua opinião reducionista do problema social. Ferréz tenta demonstrar que é mais complexa a realidade; deve ser ressaltado que a afirmação "Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes" não pode ser tomada como foi pela maioria dos leitores. A frase deve ser lida por inteiro pois quando se lê "até que o rolo foi justo" fica-se com a clara noção de apologia ao crime, ao assalto. Noção errada. No aposto "num mundo indefensável" está a chave para a ironia sagaz do rapper. Numa clara referência ao adjetivo usado por Luciano Huck para descrever a situação de São Paulo Ferréz coloca o "mundo indefensável" como o mundo simplista do global. No mundo de Huck não tem espaço a solução, só o ciclo vicioso da repressão e do aumento da violência tanto de seus algozes como do capitão Nascimento. Ferréz percebe o paradoxo e o simplismo huckiano e seu mundo indefensável. Se então o mundo é indefensável então o assaltante desprovido de posses está desprotegido contra a exploração e espoliação de seu espaço social, urbano, econômico e político e tem de roubar para se proteger, certo? Assim ele pelo menos se protege, mesmo que de modo selvagem. No mundo indefensável o apresentador ganha se viver e, pelo menos assim, protege seu bem mais precioso: a vida. É o mundo indefensável de Huck. Mundo, cidade, que todos tem de recorrer à violência para resolver seus problemas - tanto Huck como seus extraterrestres desfilantes. Mundo retratado na visão estúpida já exaustivamente analisada do Lu.

Surge então a figura de Reinaldo Azevedo. Jornalista, colunista da revista Veja, o neutro e jornalístico panfleto ideológico mais lido do país, Azevedo faz uma tentativa, em seu artigo "A pluralidade e a revolução dos idiotas" de crítica ferrenha ao texto de Ferréz. Para Azevedo Ferréz é um "empresário" que "ao lado de Mano Brown (vocalista do grupo de rap "Racionais MC"), é um bibelô mimado pelas esquerdas e pelo pensamento politicamente correto". A posição do artigo do rapper é, "por defender o crime" irrespondível e faz parte de uma "revolução dos idiotas" que começa, segundo o vejista, "agredindo a lógica" e termina justificando o assassinato. Segundo Azevedo a Folha errou em publicar o artigo de Ferréz pelo seu cunho "solapador dos princípios democráticos". A voz de Ferréz é inaceitável para o magnífico jornalista, inaceitável dentro da pluralidade democrática da imprensa e a única resposta à ela é a contestação de seu conteúdo "criminoso". Afinal, como dizem, "quem defende criminoso nada mais é do que criminoso".

Adiante Reinaldo Azevedo defende a repressão, a prisão dos marginais como solução imediata e mágica para a violência. Critica um professor da Faculdade de Direito da USP que contestava o alto índice de prisões no estado de São Paulo por este, numa relação lógica admirável, reduzir os índices de homicídios. Termina com "A minha pluralidade não alcança tolerar idiotas que querem destruir o sistema de valores que garantem a minha existência. E, curiosamente, até a deles".

Azevedo entendeu o texto de Ferréz assim como eu entendo textos escritos em sânscrito. Se eu soubesse falar três palavras em sânscrito daria um desconto para o intelectual - o problema é que só sei falar uma palavra. Durmedha quer dizer "estúpido, ignorante".

A opinião de Azevedo se mostra completamente controversa a partir do entendimento parco da ironia de Ferréz e continua nesta linha até atingir o ponto ótimo do direitismo do jornalista. Democracia? Pluralismo de opiniões? Claro, claro. Só que uma democracia azevediana dos não-idiotas afinal o jornalista exclui de seu pluralismo ideal a voz de Ferréz. Não-idiotas que lêem a Veja e tem uma opinião só sua sobre absolutamente tudo no Brasil, na ponta da língua. Não-idiotas que, por não serem idiotas, conseguiram ganhar algum dinheiro. O mundo indefensável de Huck é a democracia azevediana, o mundo que quer resolver o assalto feito por motoqueiros no Jardins em trinta dias. O mundo que quer discutir políticas de segurança pública séria, que quer discutir projetos. Proponho a Azevedo o mesmo muro que propus a Luciano - dele espero uma rejeição e um grito indignado de "comunistóide!", "uspiano remelento volte para a casa da mamãe!". Eu moro sim na casa da minha mãe, Titio Rei, e acho melhor já começar a me retratar. Como bom não-idiota é melhor eu me submeter à vossa opinião superior de mestre da verdade afinal de contas você, bom, você escreve para a Veja.

A democracia azevediana é análoga à sociedade pretensamente democrática que não dá voz aos despossuídos, aos marginalizados, aos idiotas que fazem libelo criminoso na Folha. Esses idiotas não podem ser tolerados! Querem destruir o sistema de valores que garante a existência de Azevedo e deles mesmos! Sim, claro, a existência de Azevedo como confortável jornalista da Veja a dos bandidos do Capão como bandidos idiotas do Capão. Sistema de valores? Que valores são esses? Repressão? "Direitos humanos só para humanos direitos"? "Dane-se problemas crônicos sociais, lugar de bandido é na cadeia"? A democracia azevediana é o inverso da democracia, é o "Estado de exceção" - nome chique de ditadura. O jornalista idealiza um regime que não dê a mínima voz aos idiotas. Eles são idiotas mesmo; se lhes dermos voz só falarão idiotice, né Tio Rei?

O "companheiro", as massas despossuídas, os movimentos sociais, "ensinaram" a esquerda a não pensar, diz Azevedo. É a Veja, óbvio, que deve ensinar todo mundo a pensar. A pensar do jeito certo, do jeito azevedianamente não-idiota, claro. O regime "democrático" aos moldes imaginados por Reinaldo Azevedo pode estar por vir e não gosto muito desta idéia, espero que todos os idiotas como eu também.

***

Perdoem-me pela breve digressão que segue, mas, aliás, não é a primeira vez que Reinaldo Azevedo observa atentamente o que ocorre na Academia do Largo. Como blogueiro acompanhou de perto a "invasão de idiotas", utilizando seu vocabulário, em agosto e apoiou inconseqüentemente a deposição do presidente Ricardo Leite Ribeiro e o massacre do Fórum da Esquerda. A partir daí o intelectual conceituado foi surpreendido em seu blog com por uma enxurrada de comentários de apoio "anticomunista" à suas observações indevidas, airosas, patéticas e próprias de quem não tem nada, absolutamente nada, a ver com àquela Casa. Não sei se algum parente de Reinaldo Azevedo já passou por lá ou se ele mesmo fez São Francisco mas não o vi por lá nenhuma vez nos últimos meses, estranho.