quinta-feira, agosto 28, 2008

37.

Grades, alambrados, câmeras e catracas sempre foram assunto recorrente aqui no Palavras, principalmente quando eu falava sobre meu ex-colégio. Primeiro tratei disso na parte três de "Palavras de Ordem", o texto, na seção "Arqu
itetura da destruição". Depois escrevi mais sobre grades em "Pedagogia do enjaulamento" e em diversos outros posts mais rápidos. O que eu nunca tinha pensado era que eu ia acabar escrevendo sobre as mesmas coisas, só que desta vez elas não estão presentes no meu passado cotidiano de colégio particular, mas no meu presente dia-dia de faculdade pública.


CatracasnasArcadas I

Angústia
Nesse mês chega à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para aprovação a proposta de permissão de "reforços na segurança" da dita Faculdade. Um pacote composto por catracas que controlariam as entradas, câmeras de vigilância e outras medidas aparece nesse momento com apoio veemente de muitos professores e visa combater "falhas na segurança do prédio", segundo eles evidenciadas por alguns fatos de violência como furtos, um assalto e algumas outros tipos de ocorrências. Essa proposta é encabeçada pelo diretor da Faculdade, o professor João Grandino Rodas, já notório por ter inaugurado a recente tradição de truculência no trato a estudantes e movimentos sociais.

Catracas
Uma catraca faz a mediação de uma decisão de quem entra e quem fica de fora. É uma máquina que lendo um código, um número ou uma identificação qualquer permite a entrada de alguns e barra outros. Decidir vem do latim decidere, que significava "cortar", "dividir". De fato - esse aparelho divide o espaço em dois - um público, a rua, e um menos público (eufemizando). Ele devidamente corta a realidade em dois pedaços e aliena uma das partes para um grupo restrito de pessoas que daquele local/aparelho urbano podem usufruir sem serem incomodadas pelo resto excluído.
Isso sem dúvida tem uma carga de violência pois é uma das representações físicas, arquitetônicas, de uma situação na qual se arranca de muitas pessoas até mesmo o pode pensar em entrar naquele lugar sem sofrer represálias. Não só o dito prédio mas toda uma comunidade, com o intuito de se proteger e de melhor se controlar, instala catracas para isso.
Então o debate sobre catracas e sua função se coloca então em dois planos de discussão, que se diferenciam apesar de fazer sentido tratá-los de maneira paralela pois não há aporia completa entre os dois campos. O primeiro é o conflito entre a segurança dos membros da comunidade-prédio e o seu caráter mais ou menos público. O segundo é sobre como reivindicamos a palavra controle - se ela somente significa eficiência ou se também pode ser identificada como dominação - pois evidentemente a função da catraca, o motivo alegado para aquele objeto lá estar, é essa palavra, controle.
O primeiro debate é levado de um lado a outro rapidamente conforme o caso concreto, conforme a comunidade-prédio que estamos analisando. Muda o valor da segurança e do caráter público para aquele edifício e na relação deste com o todo social que o circunda se ele é um lugar onde se realizam trocas comerciais, se ele é um prédio de apartamentos ou se nele se instala algum órgão da administração pública municipal por exemplo. Faz mais sentido que se dê mais valor à segurança mais do que à publicidade de um edifício residencial, dado que a casa das pessoas é um ambiente historicamente construído sob um invólucro de privacidade e aconchego. Sem fazermos juízos de valor se essa privacidade é positiva ou negativa o fato é que cada comunidade-prédio tem um signficado e sem reflexões sobre seu conteúdo fica difícil de dimensionarmos o que representa segurança para uma comunidade em abstrato. Entretanto é possível afirmar que se crescem o número de catracas (em abstrato, independente da qualidade dos prédios que elas foram implantadas) cresce o valor da segurança e diminui o do chamado caráter público.
Vale lembrar que esse caráter público congrega muito além do simples direito de circulação de pessoas por aquele prédio, mas como o seu direito de manifestação nele e seu convívio com os habitantes cotidianos que ali desempenham papéis ou funções. Se fazemos a escolha por determinar menos público um espaço a noção de exclusão daquela experiência está implícita, mesmo que a exclusão não seja propriamente sentida na mente do excluído (uma pessoa que não tem o crachá para entrar num prédio de escritórios está excluída da experiência de estar lá dentro, mesmo que não queira estar).
O debate sobre o controle tem genealogia acadêmica longuíssima e aqui não vale a pena lembrar todas as acepções teóricas dessa palavra; o que cabe expor nesse caso é que aumentando o controle queremos em alguma medida aumentar a eficiência de algum processo, especialmente de produção, e, em decorrência casada temos o aumento da dominação que se impõe dos condutores sobre os conduzidos dentro do próprio funcionamento da produção, por exemplo. Nem sempre a eficiência aumenta, mas é certo que a dominação sim. Dominação dos que tiveram o poder de decisão de instalar a catraca em relação àqueles que foram submetidos à ela; da vida que acontece naquele meio; dos papéis que ali são distribuídos; e, porquê não, dominação demonstrada e explícita de um pequeno território, privado do convívio do público. Aí localizamos uma relação de poder, de autoridade, apesar de todos estarem submetidos ao próprio controle.

Na universidade. Na faculdade.
Toda instituição de ensino é influenciada por sua arquitetura. O espaço físico, a disposição professor-aluno (ou educador-educando) media a educação tanto quanto a qualidade dos colegas de classe, a linguagem e a didática do professor e seus recursos, mesmo que de sua maneira peculiar. O ponto é que se pensarmos que numa arquitetura na qual, de alguma maneira, forma segue a função, uma faculdade que busca cumprir a função de produção do conhecimento de uma maneira determinada terá também a sua forma determinada por essa maneira de desempenho de sua função concedida por definição. Uma universidade que cumpre um papel de formação mais multidisciplinar será aquela que também consiga promover uma integração espacial entre os prédios dos cursos e que consiga que o corpo discente migre de um para o outro, montando seu próprio currículo, por exemplo. O espaço e seu uso não é determinante, mas ajuda, condiciona, revela e cria terrenos férteis para diversas atitudes pedagógicas. O contrário também ocorre - conseguimos muitas vezes diagnosticar no espaço tendências nas transformações destas atitudes.
Tendo isso em vista percebemos que o impacto da instalação de catracas numa faculdade (pública!), para além de trazer com força as reflexões particulares sobre o significado da catracalização (ironicamente tema da redação da FUVEST2005) dos espaços, nos deixa também o debate sobre a função da universidade pública e da produção do conhecimento científico e sobre o direito à educação.

prossegue no próximo post.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Gente, tenho certeza absoluta que tá bem chato "acompanhar" o Palavras. Isso é ruim por que depois que a gente desacostuma de acessar um blog acessá-lo de novo é muito difícil, é que nem retomar um hábito. De qualquer maneira lá vai o Chico, depois de alguns meses, retomar as postagens. Estou com a meta de pelo menos um texto, texto sim, por semana. Acho que eu consigo.

36.


Nossa satisfação quando eles são punidos
Prazer e degustação de algemas

Quando um cara pobre é preso pessoas existem aquelas pessoas que falam "bem feito, vagabundo", existem aquelas outras que agradecem a Deus, existem ainda outras que gritam "bandido", aquelas que ficam com pena e ainda outras que, numa análise da conjuntura do Brasil, pensam o quanto aquela prisão representa a criminalização da pobreza, o controle de massas, do proletariado urbano subempregado, independente de sua culpa. É, na minha opinião, uma análise coerente. Faz sentido pra mim. Além disso geralmente quem tem esse discurso fala em garantias, em direitos que aquela pessoa têm e que deve ser respeitados, sua dignidade etc.
A pergunta de hoje é: e quando um Daniel Dantas, corrupto-rico-branco-e-banqueiro, é preso? Não acho que a importância da situação do Daniel seja superior à do Fulano, do Cicrano ou do Beltrano que foram presos conforme o descrito no primeiro parágrado. As garantias devem ser as mesmas, isso eu não vou nem tocar. E também não vou nem entrar no debate de que o Daniel vai ser privilegiado no acesso à justiça e à essas garantias. Ele vai. Vai ser privilegiado, vai ser prioridade, vai ser julgado primeiro e inocente. Vai pedir um "abreoscorpus" e o presidente do Supremo Tribunal Federal, homem do Judiciário brasileiro, vai conceder e vai passar por cima de todo mundo pra isso. Isso, também não quero me alongar aqui, vai acontecer, por óbvio, por que o Dani é branco, rico e banqueiro.
Mas voltemos à pergunta. Quando o Dani é preso, o que sentimos? Se eu acho mais coerente fazer aquela análise sistêmica quando aquele outro é preso posso fazê-la também com o caso do nosso amigo aqui. Sim, ele é um banqueiro que aproveita de sua situação financeira para viver fora dos limites do insuficiente estado democrático burguês, burlando mesmo a lei que é feita para lhe privilegiar. Ele é um dos sócios do capital transnacional que está se lixando para a desigualdade social brasileira ou para nossa legislação ambiental. É bom que ele seja pego, que ele pare de fazer o que faz, mesmo que seja por alguns dias? É bom que ele seja impedido de ser 10% o que ele é? Na minha opinião sim.
Tá, mas até agora eu não falei nada que seja original ou que alguém já não houvesse falado antes. Calma, vou achar ainda o ponto.
Dadas as situações expostas eu irei além perguntar o que efetivamente sentimos e desejamos em relação aos dois personagens da nossa história, o amigo do primeiro parágrado e o Dani.
Pelo primeiro sinto, e falo por mim, um sentimento que acho que deriva daquela análise que eu falei. Não sinto pena, não, mas acho que indignação por conta do que a sua prisão representa no país onde vivemos, para sua família e para sua comunidade. Acho uma bosta que ele seja preso, ele ter tido uma vida que lhe deixou como opção dentre as suas escolhas uma ação que resultará em uma temporada de maus-tratos e a entrada para um mundo onde não existem direitos, onde ele não será nem de longe um cidadão. Para ele defendo um direito penal mínimo, que puna com o objetivo de fazer com que essa pessoa pense sobre seus atos e adquira consciência sobre o mal que fez, se é que ela efetivamente o fez. Além disso, é claro, esse direito penal mínimo incluído em todo um contexto onde o nosso amigo poderá voltar pra casa e ter em seus possíveis caminhos atalhos melhores e mais dignos dos que rumou.
E o Dani? O que sinto no fundo quando ele é preso? O que sentem as pessoas que partilham de minha análise? Feliz? Regojizo-me em ver o carequinha com algemas ou o Pitta saindo de sua casa de pijama? Para eles defendemos o direito penal mínimo? Admito que a primeira vez que eu vi ele sendo preso eu fiquei feliz, num tava nem aí. "Que bom que esse desgraçado que vive sem limites agora tem um, o da lei" - nessa hora eu parei subitamente esse meu pensamento e meta-pensei: "Calma, você viu/ouviu o que você acabou de pensar?".
"Esse desgraçado que vive sem limites agora tem um, o da lei". Se essa frase fosse dita para o cara do primeiro caso... se esse sentimento de vingança, de prazer, tivesse lugar na primeira situação e eu me visse dizendo ou pensando isso eu me acharia um dos seres mais cruéis ao sul do Equador - por que a recíproca não é verdadeira? Eu sei que as formas não são livres de seus conteúdos e que as duas situações são diferentes, mas no limite, são prisões. Quer dizer que a lei dura e que prende eu reservo só pra um dos segmentos da população, o mais privilegiado? Pior que isso, por que a lei é só o meio do caminho: será que a sede de sangue, a satisfação por ver algemas eu só tenho (de qualquer jeito, tenho) quando eu vejo as algemas nos pulsos ao lado de um Rolex? Eu não sou contra leis que criam desigualdades, não. Cotas, por exemplo, eu acho que fazem sentido, ou mesmo aquelas leis que protegem as mulheres, a diversidade sexual ou outras minorias oprimidas. A questão é se essa desigualdade faz sentido e se esse sentimento de vingança é saudável, compatível com a minha visão de mundo e com meu projeto de país e de sociedade.
Então, não é. Repensando percebi como pouco faz sentido um sentimento desses no mundo que eu quero, ou na construção do mundo que eu quero. A lei deve ser dura com o Daniel Dantas sim, não tenho dúvidas disso, mas ela não pode deixar de impedir ou lutar contra um sentimento desses, por que quem mais se aproveita dele não é o esfomeado da esquina, mas sim o bem-satisfeito do Fasano, srs. Frias, Marinho e Mesquita, que favorecem e protegem os srs. Setúbal, Ermínio de Moraes e, por que não, Dantas, que são sócios minoritários dos fundos ou consórcios transnacionais trilhardários sem nome. Esse sentimento não só faz vender o jornal, mas como desvia a noção do todo para a noção do particular, permite ao patrão reclamar da corrupção ao lado do empregado ao mesmo tempo que ele o manda sonegar algumas notinhas.
Esse desvio da atenção ao todo para a atenção ao particular é muito perigoso. Nos sentirmos felizes com a prisão do Daniel é, para além de bobo, infantil e meio cruel, uma enorme burrice porque depois de preso ele virará um ótimo exemplo de banqueiro corrupto, condenado pelos preocupados banqueiros bonzinhos, que sustentam os jornais-e-revistas-e-tvs-de circulação nacional que apontam-lhe o dedo e discutem se ele deve ou não ser submetido ao uso de algemas. Perde-se a noção que os bonzinhos são tão responsáveis pelo amigo do primeiro parágrafo ser preso e que ficar feliz e comemorar as algemas novas do Dani é esquecer que, além das algemas não serem uma coisa legal para se punir as pessoas, independente elas quem forem, os crimes que ele cometeu não são o cerne da questão social brasileira, da desigualdade, da miséria e da pobreza.
O que eu estou querendo dizer é que esse sentimento não tem ou não deve ter lugar quando pensamos o ideal e que as análises das situações, mesmo em mesas de bar, devem passar longe dele. Repetindo-o ou usando-o propagamos um senso comum manco que, além de anti-garantias, maqueará o verdadeiro problema, que existem Daniéis Dantas pelo Brasil que conseguem tudo o que ele consegue e não são presos e que ainda outros nem precisam fazer o que ele fez para explorar os trabalhadores que residem nos enormes bolsões de favelas nas periferias das grandes metrópoles.
O verdadeiro problema do Brasil, para ser percebido, passa por começarmos a falar mais do todo e menos do particular.