terça-feira, outubro 02, 2007

18.

Acho que nunca escrevi aqui em PdO qualquer texto que tratasse de assuntos de ordem nacional. Todos os escritos que acabei de rever são sobre o cotidiano escolar, a juventude, a universidade - nunca seriamente sobre algo de importância e interesse comum a muita gente. É verdade que a greve e a ocupação de maio na USP ocuparam uma parte significativa dos noticiários mas tenho de dizer que era meu dia-dia; estava lá. Se eu nada falasse seria omisso, penso. Porém não me atrevi a dissertar sobre o Lula, sobre o Renan ou sobre qualquer tema da política nacional. Acho pretenciosa e ambiciosa tal tentativa e creio que sobraria leviandade se eu o fizesse. Deve ser medo e é bom que este aqui tenha lugar e eu seja contido de falar bobagens sobre assuntos que merecem ser tratados com um entendimento de uma complexidade que eu ainda não consigo apreender.
Entretanto surge algo nesta segunda-feira (1º/10/2007) que desperta profundamente meu interesse e minha vontade de escrever. É possível que seja algo ainda limitado mas de fato é o mais longe que me permito ir em análises de cunho externo (em relação ao toque do meu olhar). Um colega acadêmico do Largo sofreu uma situação limite em sua vida e em um jornal de grande tiragem fez um desabafo. Seu nome: Luciano Huck. A história foi essa. O desabafo está aqui (quem não conseguir acessar mande-me um email em fbritocruz@gmail.com que eu mando o texto na íntegra). Comentarei o texto de Huck - veremos do que ele e eu somos capazes.


O caldeirão e sua vergonha

Lamento muito por esta situação limite que passou o colega Luciano Huck. Companheiro das Arcadas, o apresentador paulistano não merece, assim como ninguém merece, ser de tal maneira achacado, roubado, importunado de maneira tão violenta e medonha. É evidente que a atitude de seus algozes é criminosa e esse passa longe de ser o mérito desta discussão. O problema é que o global decidiu escrever, desabafar, e, penso eu, cometeu alguns atos-falhos e pecou em diversos pontos de sua análise. Sinceramente achei triste - quiçá ridículo.

Começa sua análise imaginando o que ocorreria se o pior tivesse acontecido. De maneira mórbida narra o acontecimento e é evidente a carga emocional destas primeira passagens. O problema chega quando Huck se diz indignado e começa a clamar bordões e palavras de ordem clichês. É fatal quando faz a conexão "pago todos meus impostos, uma fortuna" com "como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa"; é o começo de todo um raciocínio simplista, desesperado e patético cheio de lugares comuns indevidos. Esta conexão argumentativa representa a chave para o entendimento do pensamento do apresentador. Ele paga todos os impostos; sua dívida está quitada com tudo. Ele paga para isto não acontecer. Paga e diz que o "resultado" de os pagar é um assalto que lhe ocorreu. Penso que deveria observar melhor se este assalto é mesmo o resultado disto ou de alguma outra coisa. Seu raciocínio para quando acaba seu interesse e este é estritamente pessoal. Confunde cidadania, ser cidadão, com o simples ato de pagar "tudinho" de seus tributos - despreza o resto das acepções da palavra. Pergunto-me aqui como conseguiu realizar algumas matérias na faculdade sem saber definir com o mínimo de razoabilidade tais conceitos.
Percebe em seguida que a situação de São Paulo "está ficando indefensável", justamente esta cidade que adora, que nasceu. A mim parece-me mais uma vez indevida tal colocação. A situação de São Paulo não "está ficando indefensável" para Huck e sim ficou indefensável de uma hora para a outra devido a algo que lhe aconteceu (ou "algos", no plural, pois, segundo ele foram três assaltos próximos do próprio na cidade no mesmo dia). Este é indício da perspectiva individualista do pagador-de-impostos-cumpridor-de-seus-deveres Huck que tudo resolve com a cívica pergunta clássica de um pretenso jogo de esconde: "onde está a segurança no nosso país? Onde está a polícia? Onde estão os heróis que tem de nos salvar?!". Não vem nenhum não, Luciano, não tem, não existe herói. Mas ele quer é a polícia mesmo, a "Tropa de Elite", para resolver seu problema, o problema de assalto de motocicleta nos Jardins em 30 dias - agora, já. Quer discutir segurança pública de verdade dizendo isto. Dizendo isto?
Não sou nenhum perito no assunto mas imagino que um problema como a violência urbana não pode ser resolvido com seriedade em 30 dias a não ser que a idéia de Luciano seja cercar os Jardins com um imenso muro anti-assaltantes lotando o bairro de tanques de guerra e viaturas policiais (ainda mais do que de costume e ainda mais das viaturas das empresas de segurança privada). Não acho que ele acharia má idéia. "Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas de fogo não se teletransportam da rua Renato Paes de Barros para o infinito" diz ele. De fato, Luciano - vamos construir o nosso muro. É feliz a observação de um leitor chamado Fernando da Silveira que diz numa carta à Folha de São Paulo no dia seguinte que Huck poderia ter sido mais direto e perguntar em vez de "onde está a Tropa de Elite?" onde estaria a Tropa da Elite.
Aí encontro um parágrafo cômico em meio a toda esta aguda e inteligente análise política do nosso complexo país. O amigo neste e em outros pontos exacerba sua missão social de apresentador de tentar fazer este país se tornar mais bacana divertindo na TV e trabalhando na direção de uma ONG séria. Huck se diz alguém que não está indignado com a perda de seu rolex, mas sim como uma pessoa que "de certa maneira" "dirigiu a sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais eqüilibrado e justo". Admira-me a maneira que este o faz. Seu programa realmente detém os aspectos mais maduros da TV e da cultura brasileira e engrandece o povo tornando o Brasil mais bacana. Sinceramente. O "Caldeirão" (quem goste que me perdoe) é o que existe de mais imaturo na TV brasileira e representa a ânsia de se alimentar com uma cultura que mais parece uma massa disforme verde-acinzentada que é amontoado de sexo, informações supérfluas, sexo, fofoca, sexo, música subformada, repetitiva e sem conteúdo, sexo, entretenimento importado americano, sexo, pernas e seios femininos, sexo e uma pitada de humor zorra-total, aquele que suga seu cérebro e não te deixa pensar em mais nada. Triste que Huck ache mesmo que está construindo ou contribuindo para construir um cenário mais justo ou maduro no nosso país. Ele é um visionário provavelmente; ele e a Dani Bananinha.
Ah! Mas ele mantém uma ONG séria! Ah, ok, a cidadania não é só pagar impostos, é também ser obrigado a ter uma ONG-desencargo-de-consciência. Faço das palavras de Thiago Candido da Silva, diretor do DCE livre da USP, as minhas: "
É um pensamento típico: apenas quando somos diretamente afetados, nos movemos em gritos esparsos, em passeatas sem sentido ou apoiando políticas de repressão intensa. A solução não é a repressão, e sim a distribuição maior de renda e de oportunidades. E não é meia dúzia de pessoas em curso de cinegrafia que irá mudar a situação". Bailes (d)e caridade nunca conseguiram resolver realmente qualquer problema mesmo porque se tivessem conseguido não teríamos mais uma dezena deles por semana nas colunas sociais. E fazer parte disso não te dá carteirinha cativa de cidadão.
Seguindo o global constata debilmente uma afirmação genuína: a existência de desigualdades no Brasil. Pergunto-me se não deveríamos conferir a este genial pensador alguma espécie de prêmio por constatar algo tão inédito. Parabéns Luciano, descobriu a América. Ainda nisso sua análise apresenta problemas por aproximar situações completamente diversas que nada tem a ver uma com a outra a não ser como um recurso parco para tentar demonstrar uma idéia desesperada. A desigualdade observada por Huck é pateticamente superficial, uma desigualdade de acontecimentos, não de causas, e isso deixa sua observação simplista. Sua emoção também o toma a medida que relata que "assaltos a mão armada sendos executados em série nos bairros ricos" - "em série"? Sem querer desvalorizar esta verdadeiramente odiosa situação que Huck passou transformar isto num acontecimento em série é algo que lhe foge a competência, o faz por emoção, por achar que seu problema é o maior de todos - disso não o culpo, mas não acredito ser verdade.
"Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde está a polícia?". Luciano Huck está à procura de um salvador da pátria e isso me dá medo. Não imagino o que ele tem na cabeça quando diz isto. É o velho personalismo político brasileiro que desconsidera a existência da política das idéias e não das pessoas em sua acepção mais bela? Ou seria um neomessianismo estilo Canudos? Isto abre espaço para idolatrias e defendo que estas nunca são muito boas, quando se tem um problema tão complexo quanto o Brasil, tão difícil quanto nossa realidade. Não vai ser um "salvador" que resolverá o problema de nossa pátria e sim todos nós se nos dermos conta de suas reais causas.
E não é só esta afirmação de Luciano Huck que me assusta. Ainda pergunta qual seria a lógica de algumas coisas dentre elas "um par de 'extraterrestres' fortemente armados desfilando pelos bairros nobres de São Paulo" e isso me parece talvez a mais simbólica e forte afirmação do apresentador do "Caldeirão" no que diz respeito à natureza simplista e arrisco dizer elitistamente tapada (pois acredito que é possível talvez um pensamento elitista menos imbecil, sem entrar neste mérito) do seu ideário. Usar a expressão "extraterrestres" o denuncia completamente e mostra como Huck deseja que o muro que eu idealizei seja construído o mais rápido possível. Ele quer dizer que aqueles não pertencem aquele local apesar da Rua Renato Paes de Barros ser pública, não deveriam estar lá, deveriam estar enfiados nos barracos onde nasceram. Em vez disso ficam desfilando (como verdadeiras madames) fortemente armados pelos bairros que não os pertencem - que chamem a "Tropa de Elite", do filme que atua Wagner Moura, como se esta fosse a solução mais adequada.
Percebe-se que nosso colega não deseja a solução mais adequada, mais justa, mais madura ou mais "bacana" para nosso país e sim a mais adequada e mais "bacana" para ele próprio, a mais imediatista, o muro (que equivale a nossas blindagens e aos nossos condomínios megafechados). O franciscano Huck está envergonhado de ser paulistano? Deveria estar, em vez disso, envergonhado por ser Luciano Huck depois de escrever tamanhas bobagens. A mistura deste caldeirão passou do ponto.

3 comentários:

Unknown disse...

li o que ele escreveu e imaginei muito ele sentado em algum aula do santa ouvindo aquele discurso de alguns professores de que o santa cruz forma alunos criticos, e ele se sentindo mó importante.
mas enfim, pra mim o que mais pegou é que o que ele achou um absurdo é que roubaram o relógio dele e nos jardins. Como se fosse permitido a violencia nos outros lugares, onde só tem pobres sem educação, que são os culpados pela violencia. Mas ele, que é rico, bem educado, paga impostos e de quebra ainda diverte o país... po, ai vira errado, é vítima e ponto final.
que o resto vá pra cadeia, contanto que o heroi dele apareça e resgate o rolex.

Chico disse...

"E de quebra ainda diverte o país". Você pegou o espírito da coisa, querida.

Marcio Zamboni disse...

pois é, isso dá um tom visionário ao clássico refrão bacamartiano:
"luta contra o calderão da maga
que o condão encantado criou
inicio do fim da ebulição..."
hahahahah

gostei bastante do seu texto, kiko!
acho que pegaste o ponto!
::)
[ah, não li o texto do lulu, não deu pra abrir o link...]