terça-feira, setembro 02, 2008

38.

Como já coloquei nas Rápidas anteriores acho esse debate sobre a revisão da interpretação da Lei da Anistia muito importante. É muito importante a composição da memória coletiva do brasileiro em rumos mais progressistas que esse debate seja feito e que sejam punidos e reconhecidos moralmente aqueles que em nome de todos nós torturaram, mataram e fizeram desparecer homens e mulheres que lutavam pela liberdade, munidos de um único direito, o de resistência contra um regime de exceção assassino.



Nossa Lei da Anistia
e a infame tentativa de esquecer feridas e igualar desiguais

No final do regime de exceção iniciado em 1964 no Brasil os militares, ainda no poder, gradualmente programam sua saída e concedem a todos os envolvidos em "crimes políticos" a anistia "ampla, geral e irrestrita" em lei que livrava tanto a cara daqueles por tanto perseguidos pelos fardados quanto dos próprios agentes da exceção, da tortura, da Ditadura. Hoje se debate pela revisão na interpretação dessa lei. A tortura, segundo alguns tratados internacionais que o Brasil assina, é um crime lesa-humanidade imprescritível, ou seja, deve ser punido mesmo 20 anos depois de ter acontecido.
Os lados se acirram e aqueles que defendem o tampão na memória seguem pelo argumento da segurança jurídica, da prescritibilidade do crime no sistema jurídico nacional e de uma pretensa eqüidade entre aqueles que cometeram os chamados "crimes políticos" pelo lado da Ditadura e aqueles que resistiram a ela, os tachados "terroristas", que praticaram atos como seqüestros, por exemplo. Nesse último recurso se coloca que se a lei for revista para o lado dos torturadores ela também deve ser flexibilizada àqueles que cometeram tais crimes, por estes também serem atos de violência igualáveis aos cometidos pelo Regime Militar, de mesma gravidade.
Esse assunto é muito importante pois nos lembra que nem sempre com a lei vem o que é mais certo ou o que é justo, e que muitas vezes dá pra ser perverso e completamente injusto seguindo e obedecendo a todos os diplomas legais. Todos esses institutos jurídicos, devemos lembrar, são invenções nossas - são abstrações que podem muito bem ser véus ilusórios se não nos atermos ao conflito de fato, ao que está em jogo não só no mundo jurídico como no mundo concreto. O direito não é nem nunca foi força-motriz de nada, dele, ou de dentro dele e de seu amado dogma do "estademocrátidedireito", não sai nem nunca sairá nenhuma das grandes conquistas que já foram alcançadas pelos movimentos sociais populares que lutam por direitos humanos e sociais. O direito, no limite, efetiva conquistas depois de muitas pressões sociais, e por isso aquelas argumentações que ficam só no plano do direito perdem o chão e se mostram completamente mancas pois não contam com a base essencial de uma análise completa das nervuras sociais afetadas pelo conflito e sobre o que cada um ganha e perde com a decisão X ou Y.
É evidente que a questão não é simples, se o fosse já teria sido resolvida, até porquê questões que envolvem o embate de forças reais que agem na sociedade nunca são simples. O porém é que muitas vezes é alegada uma complexidade para colocar os defensores da punição aos torturadores como ato de revanchismo e simplismo intelectual, reducionismo autoritário. Não é revanchismo, não é simplismo ou reducionismo e nem é complexo para aqueles que foram torturados barbaramente por se insurgirem contra um Estado que matava, censurava e calava em nome de todos nós, dizer que aqueles que os torturaram devem ser punidos por isso. A complexidade vai até o ponto em que pensamos em que existem diferenças qualitativas gritantes que afastam os argumentos da prescrição e principalmente aquele da "flexibilização" da Anistia para ambos os lados.
No que diz respeito à prescrição, entrando no mérito jurídico, pois apesar deste campo não ser o da discussão principal nem prover os elementos mais caros ao debate ele faz sem dúvida uma mediação importantíssima, ela é um instituto pensado conforme algumas problemáticas determinadas, óbvio que dentro do que são abstrações jurídicas típicas. Ela existe por conta de que: (1) depois de um bom tempo cessaria o interesse social na resolução daquele crime se nada se apurasse, e; (2) depois de um bom tempo a identidade do réu é transformada, ele não é mais aquela mesma pessoa que cometeu o crime. Nessa questão é essencial que pensemos que o interesse social nesses crimes cometidos pelos agentes da Ditadura é completamente excepcional comparado à daquele crime passional cometido na esquina - estamos tratando aqui de questões de Estado brasileiras, de crimes cometidos em nome de todo o nosso povo, e negar que existe um interesse social ainda latente nessa memória, e não de um grupo de lamuriadores solitários, é tapar o sol com a peneira. As manifestações de setores inteiros do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos provam que não é um grupelho que isso reinvindica, mas sim segmento importante da sociedade brasileira. Segunda questão sobre a prescrição é que os réus se beneficiaram grandemente com a conjuntura política no cenário da promulgação da lei, que foi feita ainda durante o Regime Militar, de cima para baixo. Será que as identidades mudaram tanto assim? Muitos, muitos mesmo, ainda continuam sustentados pelos impostos de milhões de brasileiros.
E, por fim, a triste tentativa de igualar e justapor como idênticas coisas completamente desiguais. É completamente descabida a colocação de que a flexibilização da interpretação da Lei da Anistia deveria servir aos ditos "terroristas" que cometeram "crimes políticos igualmente violentos". Devemos enumerar as diferenças qualitativas: (1) Não podemos chamar de "terroristas", meros criminosos, se pensamos que aqueles que resistiam agiam no único direito que lhes fazia sentido, um Direito de Insurgência contra um Estado Assassino de Direito, que caçou como um lobo faminto todos aqueles que se levantavam contra suas atitudes. Esse direito não é uma invenção e sim uma construção histórica que remonta os clássicos políticos - temos direito de nos rebelar contra um Estado que quebra o pacto e que se volta contra as nossas liberdades que ele deveria garantir, diz Rousseau; (2) É inegavelmente qualitativa a diferença daqueles que cometem atos de violência sob o manto do mando do Estado, em nome de todos, àqueles que agem com violência para resistir e lutar contra o mesmo - essa qualidade de estar revestido da autoridade do monopólio legal da força é crucial e esse mérito contribui para percebermos a incoerência de igualar o que é materialmente desigual; (3) Os membros da resistência, os ditos "terroristas", nós sabemos os nomes de todos. Não sei o nome de nenhum torturador-geral da república do Regime da Revolução de 1964. Isso representa que alguma coisa não é tão igual assim; (4) É muito diferente o fato que as medidas de violência do lado da resistência democrática foram exceção da regra e do lado da Ditadura foram a regra da exceção. É cruel e sem cabimento igualar a violência do opressor, ainda mais sendo ele o Estado, à resistência enérgica do oprimido.
A diferença nas qualidades das situações analisadas nos leva à discussão de mérito e coloca em xeque a tentativa de deixá-los aparentemente idênticos como simples atos de violência, que se equiparam e se anulam. São coisas diferentes no mérito e devem ser tratadas como diferentes. Lembremos que essa não é discussão técnico-jurídica, é discussão jurídico-Política, assim, com "P" maiúsculo.
Sempre fazem alarde com os princípios da democracia brasileira. Acho que um deles, importantíssimos para tanto saldar dívidas com o passado como para bem-resolver o futuro e condenar de vez momentos históricos lamentáveis, é um princípio do direito à memória, do direito à história. E é história de nosso país que houve Ditadura e que ela, por meio de seus agentes torturou Fulano, Beltrano e Sicrano que resistiam à idéia de um regime de exceção onde poucos decidiam por muitos rumando o Brasil numa trilha de desigualdade e fissura social. O medo e a falta de vontade em punir os torturadores é aliada do esquecimento e do tampão histórico e, comos disse Silas Cardoso, esquecimento tem lado claro determinado na correlação de forças sociais que agem em nosso país.

Um comentário:

Silas Cardoso disse...

haha... depois de duas bolas fora, uma dentro, chiquinho!
mas claro que o texto não teria a mesma qualidade não fosse a citação no ultimo periodo...